segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Sobre como é difícil tirar o filho debaixo das asas, onde a gente acha que pode protegê-lo de tudo

 


Hoje eu vi dois passarinhos aprendendo a voar. E duas mães que, apesar de assustadas, lutavam contra o medo para ensinar aos filhos que, tudo bem, você precisa e pode voar. O mundo é seu. 

Foi isso que, com o coração apertadinho, eu fiz com meu filho quando o deixei, logo cedo da manhã, numa nova escola e numa nova série - a que indica que ele já está começando a dar os primeiros voos. Como é estranha essa sensação. Como é difícil tirar o filho debaixo das asas, onde a gente acha que pode protegê-lo de tudo, e o lançar numa nova aventura, cheia de tudo que a gente não conhece. Voa, menino. Voa. 

E ele voou. E, enquanto ele batia as próprias asas e ia desbravando o próprio céu, eu precisei ir me desgarrando da mãe que esperava o evento de recepção aos pais. Tive que deixá-la lá, presa no tal coração apertado, por entender que era preciso dar espaço pra ele voar sozinho. Ahhhh mas não foi fácil. Vi que ela ficou lá, parada, enquanto os colegas brincavam com o fato de ele ser o mais alto da turma. A vi insegura e trêmula, vendo o filho se afastar, vagorosamente, quase sem ligar, batendo as próprias asas com o vento roçando seu rosto, já tão diferente. Vi que eu precisava partir, enquanto ela queria ficar. 

E ela ficou. Ficou ali, parada naquele pátio novo, cheio de coisas novas, amigos novos, tanta novidade. Vi que ela procurava pelo menininho que um dia dissera que o coração dele batia ao mesmo tempo em que dizia "mamãe". Vi ela atordoada por não ouvir mais aquelas palavras tão engraçadas "gaviota", "pipiu birds", "dugoga". Vi o seio vazio entristecido, procurando pelo bebê que dissera, um dia, que iria até à "fánica de leite" buscar mais "leitche" e colocar, no seio amantíssimo, para que ele seguisse mamando. Ele iria fazer um buraquinho, não um buracão. 

Vi aquela mãe perdida e enxerguei nela a minha própria mãe. A mãe que sempre acolheu os filhos em asas muito grandes. Que, de uma hora pra outra, precisou abrir os braços e deixar que os três voassem suas próprias rotas. Vi o buraco que ficou nas asas que ela precisou deixar crescer muito para que os três ali coubessem, protegidos. E vi essa mesma mãe adoecer porque se julgou sozinha por não ter mais os rebentos abrigados das dores de um mundo muito doido. 

Vi uma mãe precisar voltar a trabalhar quando o filho tinha apenas 6 meses pois a lei brasileira é burra demais para entender que os filhos precisam das asas maternas por muito mais tempo logo que chegam a essa existência carnal. E imagino que essa mesma mãe tenha sentido a dor de ter que trabalhar enquanto precisava deixar o filho sozinho, sem nem sequer poder voar, sob os cuidados de asas que não eram as dela. E vi uma mãe ter a coragem de abandonar a si mesma, ao próprio sofrimento e dor tão gigantesca ao aceitar que a filha batesse asas antes que ela mesma tivesse a chance de acolhê-la em seu calor. Essa passarinha em especial bateu as asas cedo demais. E essa mãe chorou prematuramente com o ninho, agora vazio e silencioso, de asas fechadas e coração contrito. 

E vi 4 pais. Quase ninguém enxerga os pais - o que é muito injusto. Mas eu vi o pai do meu filho dizer àquela mãe que eu deixei naquele pátio afirmar que tudo ficaria bem e que, um dia, dar essa liberdade a um filho tão inimaginavelmente incrível iria, então, nos encher de orgulho. Vi o pai do meu sobrinho trabalhar em milhões horas, em milhões de hospitais diferentes, durante a maior crise sanitária da história, tendo que absorber a dor de outras histórias, porque ama demais o seu ofício. Vi esse pai montar uma família com a mulher que sempre amou - a mulher da sua vida - e aprender a voar voos muito sofridos só para ajudar ao outro. 

Vi um pai despedir-se da filha, a quem amou tão intensamente durante curtos 9 meses - um amor maior do que a própria existência. Vi esse pai aprender a deixar que ela batesse asas antes que ele próprio pudesse lhe contar dos perigos desses céus todos por aí a fora. E vi um pai ser fortaleza para uma mãe já massacrada, que cruzou todos os mares para abrir as asas e abrigar o filho, eterno pai, obrigado a deixar sua passarinha voar para céus aos quais ele ainda não pode chegar. Eu vi esse pai ser mais forte do que todos os outros pais - e a se obrigar a fingir que estava tudo bem em deixar as crias partirem. 

Em todas essas mães e em todos esses pais, eu vi amor, medo, ansiedade e desapego. E em seus filhos, em todos eles, eu vi a coragem de bater as asas e voar seus próprios voos. 

Hoje, na hora do almoço, no jardim do prédio em que trabalho, eu vi um filhote de passarinho aprendendo a voar. A mãe subia e voltava, quase como se dissesse "tá vendo como eu faço?", "não tenha medo. É muito fácil", creio que sem nem ela mesma acreditar nisso. Mas ela sabia que precisava ensiná-lo a voar. Afinal, é sua natureza. Essencial para sua sobrevivência. Natural para sua existência. Mas tão difícil ensinar e depois vê-los batendo as asas, afoitos, rumo ao desconhecido. 

Eu não sei quando o passarinho vai aprender a voar. Sei que sua mãe, apesar do medo, da dor e de tudo o que precisa abandonar para deixá-lo partir, não vai desistir até que ele, com o peito inflado de tamanha coragem, ganhe os ares e voe rumo à sua própria nova, incrível e exultante história.