quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Tire o seu machismo do caminho


Terça-feira passada, dia 22 de agosto de 2023, fui à academia como em qualquer outro dia. Parecia a feira de Caruaru. Em determinado momento, juro ter ouvido aquele forrozinho maroto que nos convida a esquecer a vida e dançar no pra lá e pra cá despreocupadamente. Mas o barulho era demasiado estridente: anilhas sendo jogadas ao chão; gente gemendo alto pra mostrar que estava treinando pesado; outras gentes falando atabalhoadamente enquanto deveriam estar focadas no compromisso de cuidar de si e a música infernalmente alta que toca em qualquer estabelecimento do tipo. Dei de ombros, coloquei o fone e fui fazer o meu. 

Por orientação do personal, deveria começar pelo treino de força e, posteriormente, ao fim de tudo, fazer o cárdio. Estratégia nova de tortura para acelerar a perda de gordura e o tal déficit calórico. Era dia de um dos meus treinos de inferiores. Rodei o lugar a procura de uma máquina vazia e todas, absolutamente todas, tinham filas. Pareciam as longas filas que se formavam nos orelhões quando não existiam telefones fixos ou celulares. Enfrentei o personal e decidi começar pelo cárdio. Nesse meio tempo, não era possível, a academia haveria de se esvaziar.

Meia hora depois de 15 minutos de bike e mais 15 de escada - outro instrumento moderno de auto tortura -, fui à nova caça das máquinas. Havia ainda mais gente. Havia ainda mais filas. E, pela educação que me foi dada, pus-me a esperar pacientemente pela minha vez. Uma hora ela chegaria. Quando a última pessoa antes de mim terminou suas séries, agradeci a liberação do equipamento e comecei pela extensora - já que a leg estava com uma fila maior ainda. Pensava no personal falando "cadència 3 por 1", "tá muito rápido", "vá mais devagar" e tentei me concentrar no esforço de tornear as pernocas. 

Finda a primeira série, um senhor se aproximou e perguntou se faltava muito. Eram três séries apenas e, agora, só faltavam duas. Expliquei e pedi gentilmente que esperasse. Ele não esperou. Perguntou-me, insistente: a gente pode revezar? Em qualquer outro dia, eu até revezaria, mas já haviam se passado quase 1h30 de academia e era o primeiro exercício que eu havia começado depois de esperar o tempo de tantas outras pessoas. Resisti por mais um momento. Expliquei novamente que faltavam apenas duas séries e pedi, mais uma vez, que aguardasse, porque, até aquele momento, ninguém havia revezado comido. 

"Pois comigo você vai revezar", retrucou, irônico e ameaçador, o sujeito que não aguentava esperar. "Cadeira de academia foi feita para revezar", bradou ele, feroz e ironicamente. Pensei em reagir. Respirei fundo. A ansiedade começou a atacar e eu decidi que não acionaria o maridão para não criar um problema maior. Cedi. Cedi o equipamento pelo qual eu havia esperado quase meia hora. Cedi porque me veio uma vontade enorme de chorar. Cedi porque entendo, no tom ameaçador do sujeito, uma certeza de que, por ser homem, ele tinha mais direitos do que eu. Não deveria, mas cedi e me propus a revezar. 

A garganta deu um nó. O peito apertou, o ar faltou e eu decidi me afastar, deixando para ele a máquina pela qual havia esperado tanto. Como se já não fosse o bastante, a citada criatura, certo de sua vitória, retrucou, enquanto eu me afastava, que a academia era pública e que eu deveria aprender a revezar. Não foi nem o conteúdo, mas a forma de falar. E assim, a contragosto, sentindo a ansiedade se manifestar, me afastei e fui esperar o marido terminar o treino no banheiro. Tive medo de sucumbir ao pânico ali mesmo, no meio de tanta gente preocupada apenas com a própria bunda. 

Marido estranhou a mensagem enviada pelo whatsapp e se recusou a me deixar esperando no banheiro. "Vamos embora", disse ele em tom preocupado e condescendente, "estou aqui fora lhe esperando". Senti-me acolhida na compreensão do meu companheiro, esta mesma que faltava a tanta gente. Mas ele estranhou. Sabe que eu sou rata de academia e, sem conhecer o teor da história - sobre a qual eu ainda não havia falado para evitar confusões outras -, iniciou uma sequência de perguntas para descobrir o que tinha acontecido. 

Ainda no estacionamento da academia, cedi aos apelos e dei meu relato, o peito ainda arfando de ansiedade, medo e agonia. Ele quis voltar. Queria enfrentar a peça que havia me deixado naquele estado. Retruquei que não. Não seríamos mais dois loucos a brigar por máquinas na academia. Os argumentos dele eram bons: você não pode se deixar intimidar por um homem só por que ele acha que pode. Você não pode ceder a esse tipo vil de machismo. 

Eu sei que não. Mas é difícil não se amedrontar diante das ameaças de um homem qualquer, seja ele quem for. 

Depois de muita insistência minha, ele desistiu da empreitada e seguimos para casa, Enquanto dirigia, ouvia os murmúrios dele quanto à covardia de homens que só afrontam mulheres teoricamente sozinhas. Os mesmos homens que se tremem quando diante de outros, teoricamente com o mesmo grau de poder, direitos e tirania. 


Pensei na fragilidade de todas as mulheres no país que ocupa o quinto lugar em assassinatos de pessoas do sexo feminino e que é o que mais mata mulheres trans em todo o mundo. O mesmo país que, em 2022, apresentou um aumento de mais de 20% no índice de violência sexual contra mulheres, com a tenebrosa taxa de mais de 45% delas ter até 13 anos. O país onde uma mulher é estuprada a cada 7 minutos e no qual, a cada 120 segundos, uma sofre algum tipo de violência - física, psicológica, moral, patrimonial, sexual, entre tantas outras. Um país que maltrata suas mulheres apenas por elas serem... mulheres. 

Lembrei das vezes em que critiquei mulheres correndo na rua, solitárias, tarde da noite. Ou que usavam roupas curtas quando sozinhas. Que deixam seus carros parados, com a janela aberta, ou simplesmente trafegam pelas estradas sem a companhia de um homem. Pensei em como era injusto nós mesmas pensarmos assim e na indústria que incutiu em nosso subconsciente a ideia de que devemos temer os homens, baixar a cabeça e obedecer, tal e qual lagartixas, ou, pior, como bonecas infláveis sem vontade alguma. 

Ser mulher no Brasil não é fácil. Exige coragem e disposição para ouvir o impensável. Exige empenho para lutarmos contra o machismo que machuca nossos corpos, fere nossas almas e nos alija completamente de nossas vontades, necessidades e de nossas mais singelas demandas. Exige postura para lutar contra a misoginia, o sexismo e o machismo culturalmente enraizado. Exige o aprender a dizer não. Exige o aprender a não temer. Exige o aprender a se defender. Exige conhecimento sobre nossos próprios direitos. 


O Brasil precisa salvar suas mulheres. E precisa fazer isso agora!