sábado, 23 de julho de 2022

Quarenta, oitenta, sal e mar



Dia desses, não faz muito tempo, me disseram algo que eu já sei de longa data: você é intensa! Ou oito, ou oitenta. Impulsiva (algumas vezes até meio louca). Porém, sempre intensa. E eu perdoo quem me disse isso, nessa fase transgressora em que, atrevidamente, eu tenho me (re)permitido ser eu. Deve ser o sal que ainda precisamos dosar para entender a medida certa da realidade. Sal, tempo e paciência. 

Intensa. Não foi como se eu tivesse descoberto, de repente, o segredo do universo. Em outros tempos, tão distantes que eu já quase nem me lembro mais, sempre fui de arroubos. Mas a grande sacada de, agora, perceber-me intensa foi entender o tanto de tempo em que eu me encolhi na apertada caixa do 8. Apertei-me num modelo que não me comportava para caber nas projeções de um bocado de gente. É a tal fábula do pote de margarina. 

Nossa cultura é cruel com as mulheres. Desde cedo - na escola, em casa, ouvindo avós, tias, madrinhas, mães, comerciais de brinquedos e desenhos animados - crescemos com a obrigação de sermos perfeitas. Um 8, nunca um oitenta. Se pararmos para ler nas entrelinhas de tantas fábulas que contam às meninas - Brancas de Neve, Cinderelas, Rapunzel - ficamos com a estranhíssima mensagem de que mulher é aquela que espera. O verbo dessas princesas açoitadas pelo mundo inteiro é do esperar. 

Elas esperam o tempo passar; esperam agradar homens desconhecidos; esperam ser aceitas, reconhecidas, acolhidas, vistas; esperam um príncipe encantado que, na certa, irá salvá-las de bruxas, dragões e de tantos outros monstros. E assim, esperando no verbo esperar, elas anulam a própria existência, seus desejos, suas crenças, frustrações, angústias, medos, fúrias, tesão e mais um sem número de emoções que simplesmente não cabem na apertada caixinha do 8,

Não lembro quando tomei a decisão (e nem mesmo se esta foi consciente) de que deveria caber exatamente entre um 7 e um 9. Nem mais, nem menos. Desempenhando papéis automáticos que já haviam sido desenhados por muitas outras gentes antes de mim. Mas eu lembro quando, conscientemente, decidi que voltaria a ser oitenta. E, embora certa de que não seria um caminho repleto de flores, deixei os espinhos sangrarem a pele e brotei, rosa mística, intensa e selvagem. Brotei renovada, numa intensidade acumulada que pululava, como doida, bem dentro de mim.

Ser intensa na cultura do patriarcado não é fácil. É preciso, a todo instante, parafrasear a Rita Lee e afirmar que "não sou freira, nem sou puta". Sou (quase) sempre um oitenta - livre, empoderada e feliz. 

Mariana Lira 

23/07/2022